O rapper Lil Nas X, vencedor do prêmio Grammy e assumidamente gay, é um dos maiores nomes do rap na contemporaneidade. (Foto: Getty Images).
Lauryn Hill nunca lançou outro álbum após o The Miseducation of Lauryn Hill. (Foto: Getty Images/Revista Monet).
As cores dos sons
Representatividade tem se tornado um assunto cada vez mais em alta. Nas novelas, nos filmes, nas séries e em peças publicitárias, a diversidade se vê cada vez mais presente. E não é diferente no mundo da música. Artistas latinos como Anitta, Bad Bunny, Maluma e Karol G têm conquistado mais espaço no mercado global, em que antes apenas Jennifer Lopez e Shakira eram reconhecidas por sua ancestralidade e cultura.
O rap, que era predominantemente masculino, com algumas exceções como Lil Kim e Nicki Minaj, vem contando com a presença cada vez maior de rappers femininas, como Cardi B, Doja Cat, Megan Thee Stallion, Lizzo, SZA e Tinashe. Inclusive Doja Cat é a responsável por um dos maiores sucessos desta década, a canção “Say So’. Lizzo se tornou reconhecida com o viral “Truth Hurts'' que fez com que outras duas canções da norte-americana, “Good as Hell” e ''Juice”, se tornassem conhecidas.
Apesar do sucesso e da presença cada vez maior de artistas negros, diversos cantores e compositores da indústria apontam as barreiras que ainda devem ser quebradas. Tyler, the Creator, vencedor da categoria de Melhor Álbum de Rap pela obra Igor, chamou atenção para o problema do racismo ainda firme na indústria. Na ocasião, o rapper disse: “Por um lado sou muito grato que algo que fiz possa ser reconhecido em um mundo como esse”, disse o norte-americano. “Mas ao mesmo tempo que é ruim quando nós, e me refiro a caras que se parecem comigo, fazem algo que transcende gêneros, sempre nos colocam na categoria de rapper ou urbano. E eu não gosto dessa palavra ‘urbano’, é só um jeito politicamente correto de dizer ‘a palavra com n’”, concluiu.
A palavra a qual a voz de “See You Again”, sua canção mais conhecida com mais de 500 milhões de reproduções no Spotify, e que conta com a participação da cantora colombiana Kali Uchis, se refere é uma gíria ofensiva na história e sociedade estadunidense, tendo surgido no período escravocrata.
Outra artista que já fez críticas semelhantes é a rapper Nicki Minaj. Em 2015, após o anúncio das indicações ao Video Music Awards (VMA), premiação da MTV que premia artistas por seus projetos audiovisuais com base no voto do público, a dona do sucesso "Anaconda'' se mostrou incomodada pelo clipe da música não ter sido indicado em Vídeo do Ano. “Se eu fosse um ‘tipo’ diferente de artista, Anaconda teria sido indicada em Melhor Categoria e Vídeo do Ano, também”, escreveu em uma postagem na rede social Twitter.
O rapper paulista Akali diz que as barreiras que artistas negros enfrentam na indústria fonográfica são as mesmas que pessoas pretas enfrentam no dia a dia: racismo. “Até mesmo na dificuldade para arranjar um trampo”, acrescenta. O compositor lembra que a indústria é injusta, e que não importa o quanto alguém se esforce para conquistar o primeiro lugar, dificilmente é reconhecido pela Academia.
Apesar da abrangente e crescente representatividade de artistas negros na indústria fonográfica, a fala de Akali se concretiza quando percebe-se o quão pouco reconhecidos são por grandes premiações. Apenas 11 artistas pretos conquistaram o Grammy de Álbum do Ano durante os 64 anos da premiação. Stevie Wonder foi o primeiro primeiro artista negro a ganhar na categoria em 1974 pelo seu 16º álbum de estúdio Innervisions. O cantor viria a ganhar novamente em 1975 por Fulfillingness’ First Finale, eventualmente sendo o único artista negro a ser premiado em Álbum do Ano duas vezes.
Outros artistas que conquistaram um Grammy de Álbum do Ano foram Michael Jackson (1984), Lionel Richie no ano seguinte, Quincy Jones em 1991 e Natalie Cole no ano seguinte. Em seguida vieram Whitney Houston (1994), Lauryn Hill (1999), o duo Outkast (2004) e Ray Charles, que ganhou um Grammy póstumo no ano seguinte, e Herbie Hancock (2008). Jon Batiste foi a mais recente vitória na categoria por um artista negro, 14 anos após a última.
Após a vitória de Lauryn Hill em Álbum do Ano pelo seu álbum de estreia The Miseducation of Lauryn Hill, que também é seu único álbum lançado, nenhuma outra artista negra feminina conseguiu conquistar o gramofone dourado na mesma categoria. Até hoje o álbum Lemonade da cantora Beyoncé é considerado um dos mais esnobados pela Academia. O disco perdeu o prêmio para 25, da britânica Adele, mesmo tendo uma recepção positiva maior por parte da crítica.
Artistas asiáticos ou de ascendência asiática, ou que foram naturalizados em outro país, ainda lutam por reconhecimento na indústria, também. É o caso da cantora nipo-britânica Rina Sawayama. Natural de Niigata, no Japão, a família de Sawayama se mudou para o Reino Unido quando a artista ainda era uma criança. Mesmo tendo vivido no país por mais de 26 anos, a cantora não era elegível para competir em premiações britânicas, como o Brit Awards e o Mercury Prize, por não possuir cidadania britânica.
Em uma entrevista à BBC, a cantora comentou que ficou com medo de ser colocada na lista negra da indústria por trazer a questão à tona. “Fico feliz que eu falei sobre”. Após algumas reuniões com o BPI (British Phonographic Industry, ou Indústria Fonográfica Britânica), que organiza o Brit Awards e o Mercury Prize, a artista conseguiu mudar as regras, e agora qualquer pessoa que tenha vivido no Reino Unido por mais de cinco anos está elegível à indicação, mesmo que não possua cidadania britânica.
Para Beatriz Aoki, Mestre de Artes em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, o problema não é apenas a desvalorização do artista asiático ou descendente de asiáticos, mas também a exotização, que rotula pessoas asiáticas como sendo diferentes e exóticas, bem como sua cultura. “Ainda é muito difícil para descendentes de asiáticos fugirem um pouco do estereótipo, do que se entende como uma cultura oriental”, afirma.
O Grammy, premiação norte-americana que consagra artistas por seus feitos na música, tem um histórico maior em premiar artistas de ascendência asiática ou naturalizados nos EUA do que o Brit Awards e o Mercury Prize. Como é o caso do produtor Phil Tan, que se tornou o primeiro malaio da história a ganhar um gramofone dourado por seu papel na produção do álbum The Emancipation of Mimi, de Mariah Carey.
Mas mesmo que a indústria fonográfica ocidental falhe em reconhecer o trabalho de artistas étnicos, ainda existem premiações que celebram a carreira e a obra de artistas pretos e asiáticos, tanto no ocidente quanto no oriente. O Asia Artist Awards (AAA) é uma premiação sediada na Coreia do Sul que premia apenas artistas asiáticos, com foco no K-Pop. O BET Awards é uma premiação norte-americana com foco em artistas pretos. O Japan Record Awards é considerado o “Grammy” japonês, por ser a premiação mais prestigiada do mercado nipônico.
Porém nem tudo é mil maravilhas. O BET Awards recentemente se envolveu numa controvérsia com o rapper Lil Nas X. Abertamente gay, o compositor acusou a premiação de homofobia. “Industry Baby” é um dos maiores sucessos do ano, e é uma parceria de Lil Nas com o também rapper Jack Harlow. Porém apenas Harlow foi indicado na premiação, enquanto o dono do sucesso “Old Town Road” ficou de fora.
Entretanto, o sucesso não pode apenas ser medido por uma indicação a um prêmio, como pontuou a atriz Halle Berry em uma entrevista na qual expressou sua insatisfação com a falta de atrizes negras sendo reconhecidas pelas grandes premiações por seus trabalhos. A black music vem ganhando cada vez mais força numa indústria há muito tempo dominada pela música pop, em sua maioria cantada por artistas brancos. Mesmo que Lil Nas X não tenha sido reconhecido no BET Awards, o sucesso do jovem é inegável: “Industry Baby'' possui mais de 1 bilhão de reproduções na plataforma de streaming Spotify, enquanto “Old Town Road” soma mais de 800 milhões de execuções.
O crescimento do pop asiático também abriu portas para indústrias musicais orientais e sua cultura: se antes apenas os EUA tinham seus artistas ganhando reconhecimento à nível mundial, os idols vieram para quebrar o paradigma.
O sucesso de grupos como Blackpink e BTS levou ainda mais adiante a onda hallyu, ou hallyu wave em inglês, que se trata da exportação da cultura sul-coreana, algo que bandas como 2NE1, Big Bang, Girls’ Generation, TVXQ e Wonder Girls já haviam começado na música anteriormente. Mas não pense que apenas os EUA foram alvo deste movimento. Helmer Marra, mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) explica um pouco mais sobre a origem desse fenômeno.
O quarteto Blackpink foi um dos grupos asiáticos a se apresentar no Coachella, maior festival de música dos EUA. (Foto: Watchara Phomicinda/The Press Enterprise/SCNG).
A solista Boa se tornou revolucionária ao ter conseguido quebrar a barreira cultural entre Coreia do Sul e Japão e comercializar suas músicas na Terra do Sol Nascente. Outros grupos, como o Twice da JYP Entertainment, começaram a ingressar e emergir no mercado estadunidense e com um ótimo começo: a quarta turnê do grupo, a ‘III’, conquistou um público de 100 mil pessoas em sete cidades. O sucesso foi tanto que o noneto lançou novas datas.
Aoki diz que “O K-Pop foi feito já pensando num mercado global, já colocando nomes (de músicas e grupos) em inglês, partes de músicas em inglês, já mais próximo de um ritmo e de uma estética que não fosse tão local”. Helmer acrescenta e explica que a influência do ocidente na música sul-coreana se deu ainda durante a Guerra das Coreias.
O modelo de negócios adotado pela indústria de entretenimento sul-coreana veio do J-Pop, ou pop japonês. Segundo Aoki, a alcunha idol e o conceito se tornaram populares no Japão por meio do filme francês Cherchez l’idole (Encontre o Ídolo, em tradução livre) de 1964, estrelando Sylvie Vartan. O filme conta a história de um homem que furta um diamante para sua namorada. Após roubá-lo, ele esconde a jóia em uma guitarra, e depois descobre que o instrumento está em posse de um de cinco músicos.
Aoki explica que os anos 80 ficaram conhecidos como os “anos dourados dos idols”. Durante esse período, cerca de 50 novos artistas eram lançados no mercado anualmente. Mas não apenas à música se dedicam estes artistas, como também participam de programas de TV, atuam em séries e filmes e estrelam campanhas publicitárias. Como o Japão ainda é uma indústria na qual o consumo de CDs e DVDs ainda é muito grande, a exposição muito forte destes cantores à mídia é algo benéfico à venda de música, também.
A colombiana Karol G marcou 2019 com o hit "Tusa", parceria da cantora com a rapper Nicki Minaj. (Foto: Billboard).
Com os anos, diversos grupos asiáticos foram conquistando espaço na indústria, mesmo que aos poucos. Em 2013, o Girls’ Generation venceu a categoria de Vídeo do Ano no YouTube Music Awards pelo clipe da música “I Got a Boy''. No mesmo ano o grupo masculino Exo, que pertence à mesma empresa do SNSD (sigla para o nome coreano do Girls’ Generation), ganhou na categoria Ato Mundial do European Music Awards, da MTV, após dois anos do então quinteto BigBang ter vencido contra artistas como Britney Spears, a britânica Lena e a banda brasileira Restart.
E não para por aí. Em 2019, o quarteto feminino Blackpink, composto pelas integrantes Jennie, Jisoo, Rosé e Lisa, se tornou um dos primeiros artistas asiáticos a se apresentar no palco do Coachella, maior festival de música dos EUA. Naquele ano, o trio japonês de música eletrônica Perfume também se apresentou. Três anos depois, o grupo Aespa, também um quarteto formado pelas integrantes Karina, Winter, Giselle e Ningning (sendo estas duas últimas, japonesa e chinesa respectivamente), se apresentou no palco principal do evento.
Para além de premiações e festivais, também o sucesso nas paradas. O grupo BTS se tornou o primeiro grupo da história a conseguir a primeira posição da Billboard Hot 100, principal parada de singles norte-americana, com a canção “Dynamite”. O feito vem quase oito anos após o cantor Psy ter alcançado o primeiro lugar com o sucesso “Gangnam Style”.
Segundo Thabata Arruda, fundadora e diretora criativa da Yes, Tupi, um hub de música que propõe reflexões sobre a indústria musical, o crescimento de artistas de outros países no mercado estadunidense “se deve aos featurings (colaborações entre diferentes artistas), internet, redes sociais e uma geração de artistas latinos que compreendem muito bem sua base de fãs, e que acabam criando comunidades muito engajadas (com sua música)”.
Thabata explica também que o mercado musical latino compreende não apenas a América Latina, mas Espanha e Portugal também. “Lá no Latin Grammy (Grammy Latino) são esses países que são considerados nas categorias: Portugal, Espanha mais a nossa América Latina, que inclui o Brasil. Falamos português, mas somos latinos”.
Arruda lembra que, apesar do crescimento do mercado musical latino, o mercado global ainda é hegemônico e segue tendências ditadas pelos Estados Unidos. “Quando a gente tem um mercado hispano-falante e tem artistas brasileiras inseridos ali, cantando em português e tomando a proporção que tá tomando, realmente é uma coisa de se parar, analisar e entender mais profundamente (ao quê isso se deve)”.
Thabata afirma que, enquanto o mercado estadunidense ainda é um pouco fechado para artistas latinos, o europeu é mais acolhedor. “Tanto que você tem vários artistas pequenos, como a Liniker, fazendo turnê lá fora”. A canção “Ai Se Eu Te Pego”, do cantor Michel Teló e lançada em 2011, por exemplo, alcançou o top 10 do iTunes de seis países do continente.
Em 2022, mais de dez anos após a explosão de Teló pelo mundo, foi a vez de Anitta: a canção “Envolver” se tornou um viral e dominou as principais paradas do Spotify, principalmente a Top 50 Global, que mostra as 50 músicas mais tocadas na plataforma no mundo inteiro.
E para além das paradas, há o reconhecimento fora delas. Na edição deste ano do Coachella, a artista marcou presença com uma performance marcante que representa o Brasil e sua cultura. Além de Anitta, outra cantora latina também dominou o palco: a colombiana Karol G, dona do sucesso “Tusa” em parceria com Nicki Minaj. Cada vez mais, artistas de outras nacionalidades e etnias vêm se tornando conhecidos por sua música, o que também ajuda a evidenciar a cultura de seus países. E eles vieram para ficar.